março 03, 2018

Análise do episódio de Inês de Castro






A partir da terceira estrofe do Canto III de Os Lusíadas há uma mudança de narrador da ação, pois deixa de ser o poeta – narrador heterodiegético (não participante) – para ser Vasco da Gama, um narrador autodiegético (participante). Através de uma longa analepse, o navegador conta a História de Portugal desde o berço até ao momento da viagem.

INÍCIO DA NARRAÇÃO DO GAMA

Estâncias 3 e 5: Após um momento de reflexão, Vasco da Gama ergueu o rosto e falou assim ao rei e a quantos o rodeavam, ansiosos de o ouvir: “Mandaste-me, ó rei, contar a história da minha pátria e não a de um povo alheio. Sentir-me-ei embaraçado ao fazê-lo, pois, como apenas tenho a descrever-te episódios gloriosos, julgarás que narro com parcialidade. Além disso, os feitos dos portugueses são muitos e todo o tempo é pouco para contá-los. Mas, porque me mandas e mereces ser obedecido, tentarei ser breve. Somente a verdade sairá da minha boca e, por mais que diga, ainda ficará muito por dizer. Para seguir uma ordem na minha narrativa, falar-te-ei, primeiro, da nossa terra e só depois das batalhas sangrentas que travámos.”


INÊS DE CASTRO



Plano da História de Portugal (encaixado no plano da viagem)


Estâncias 118 e 121 – Exposição

Estância 22: Dignamente sentado num trono de estrelas, estava Júpiter, empunhando os raios forjados pro Vulcano, símbolos da sua justiça. Transparece-lhe no rosto a beleza que é própria da divindade. A coroa e o cetro que ostenta são feitos de uma pedra mais clara que o diamante.


Estância 118: 
Depois da vitória do Salado sobre os Mouros e regressado D. Afonso IV a Portugal para festejar a paz conseguida com esta guerra, deu-se o caso triste e digno de memória, que até os mortos revolta, daquela miserável que depois de ser morta foi rainha (Inês de Castro).


Estância 119:
 O narrador apresenta-nos o Amor como o grande culpado da morte de Inês, como se esta fosse a sua pior inimiga. Dizem que a sede de amor nem com lágrimas se satisfaz: ela exige sacrifícios humanos nos seus altares.

Estância 120: 
Inês vivia tranquilamente os anos da sua juventude e o seu amor por Pedro nos saudosos campos do Mondego onde confessava à natureza o amor que sentia pelo dono do seu coração. 

Estância 121: 
Na ausência do seu amado socorria-se das lembranças, das memórias de alegria: de noite em sonhos; de dia em pensamentos. 


Estâncias 122 e 131– Conflito

Estância 122: 
Pedro recusa-se a casar com outras belas senhoras e princesas porque o seu amor por Inês fá-lo desprezar os outros. Vendo esta conduta apaixonada e estranha, o pai, D. Afonso IV, considerando o murmurar do povo e a atitude do filho que não se queria casar... 

Estância 123
: ...decide condenar Inês à morte para desse modo libertar o filho, preso pelo amor, julgando que o sangue da sua morte apagaria o fogo desse amor. Mas que loucura foi essa, que permitiu que a mesma espada que combateu os Mouros se levantasse contra uma dama delicada? 

Estância 124: 
O rei inclina-se a perdoar Inês quando esta é levada pelos carrascos à sua presença, mas o povo, com razões falsas e firmes, exige a morte. 
Ela, com palavras inspiradas mais pela dor de deixar os filhos e o seu príncipe que pelo receio da própria morte... 


Estância 125:
 ...levanta os olhos (as mãos estavam a ser atadas pelos carrascos) e, depois de olhar comovidamente os filhos que estavam junto de si, temendo a sua orfandade, disse ao rei e avô: 

Estância 126:
 Se até nos animais ferozes, que a natureza fez cruéis, e nas aves selvagens, que só pensam em caçar, vimos existir piedade para com crianças pequenas como aconteceu com a mãe de Nino e com Rómulo e Remo,

Estância 127:
 ...tu que és humano (se é humano matar uma donzela fraca e sem força, só por amar quem a ama), tem em consideração estas criancinhas. Decide-te pela compaixão delas e minha, pois não te impressiona a minha inocência. 

Estância 128: 
E se na guerra contra os Mouros mostraste saber dar a morte, sabe, agora, dar a vida a quem não cometeu nenhum erro para a perder. Mas se mesmo assim achas que a minha inocência merece castigo, desterra-me para a fria Cítia ou para a Líbia ardente onde viverei em sofrimento para sempre. 

Estância 129: 
Manda-me para onde haja tigres e leões (animais selvagens) e verei se encontro entre eles a piedade que não encontrei entre humanos; e aí criarei estas criancinhas, a minha única consolação, a pensar em Pedro que amo. 

Estância 130: 
O rei queria perdoar-lhe, impressionado com aquelas palavras, mas o pertinaz povo e o Destino não perdoam. Os que aconselharam a morte e julgando que estavam a fazer um grande feito desembainharam as espadas. É contra uma dama indefesa que vos “amostrais” valentes e cavaleiros? 

Estância 131:
 Do mesmo modo que Pirro prepara o ferro para matar a jovem Policena, que se oferece ao sacrifício, com os olhos postos em sua mãe, de quem era a sua única consolação... 

Estâncias 132 e 137– Desenlace

Estância 132:
 ... assim os algozes de Inês, sem se preocuparem com a vingança de D. Pedro, se encarniçavam contra ela, espetando as espadas no colo de alabastro, que sustinha as obras que fizeram Pedro apaixonar-se por ela, e banhando em sangue o seu rosto, já regado com as suas lágrimas.

Estância 133:
 Bem puderas, ó Sol, não ter brilhado naquele dia, como aconteceu com o sinistro banquete em que Atreu deu a comer a Tiestes os filhos deste. E vós, côncavos vales, que ouvistes o nome de Pedro, na sua voz agoniante, por muito tempo fizestes eco do seu nome. 

Estância 134:
 Assim como a bonina que é cortada antes do tempo por uma menina descuidada fazendo com que murche rapidamente, também Inês perdeu a cor e a vivacidade da pele com a morte.

Estância 135:
 A natureza chorou durante muito tempo a sua morte e quis eternizá-la na fonte das lágrimas que ainda hoje existe.

Estância 136:
 Não levou muito tempo que D. Pedro não tirasse vingança deste crime. Pois, mal subiu ao trono, mandou procurar os homicidas e, em combinação com o rei de Castela, também chamado Pedro, mas de coração mais duro ainda, conseguiu capturá-los no reino vizinho e, trazendo-os a Portugal, deu-lhes uma morte cruel.

Estância 137:
 Durante o seu reinado, foi feita justiça rigorosa aos ladrões e assassinos, já que o maior empenho de D. Pedro foi castigar os maus, fossem eles quem fossem, estivessem onde estivessem.


ALGUNS ASPETOS IMPORTANTES:

Neste episódio lírico, o tom otimista e eufórico da epopeia é deixado de lado. O narrador interpela o Amor acusando-o de ser responsável pela tragédia, sendo a inconformidade do “eu” poético expressa ao longo de todo o episódio, bem como a repulsa pela morte de Inês, chorada até pela natureza.

O amor surge neste episódio personificado como causa da morte de Inês. É apresentado como um sentimento negativo e antitético, pois seduz mas gera as maiores tragédias e tem em Inês uma heroína trágica, vítima desse amor cruel e despótico. É caracterizado negativamente: “puro amor com força crua”, “fero...áspero e tirano”.

Camões altera a verdade histórica e orienta o episódio para uma intensa poetização. O poeta insiste na inocência de Inês como vítima do amor, mais do que vítima de razões políticas ou de estado. O amor é um engano... 

O repúdio do narrador pelos agentes da condenação de Inês contrasta com a simpatia que ele nutre pela personagem, como podemos constatar através da adjetivação usada:


Agentes da condenação
“horríficos algozes”
“com falsas e ferozes Razões”
“duros ministros”
“avô cruel”
“ peitos carniceiros”

Inês de Castro
“fraca dama delicada”
“tristes e piedosas vozes”
“olhos piedosos”
meninos “tão queridos e mimosos”

“brutos matadores”

Esse repúdio é ainda visível na comparação do caso de Inês com outros atos cruéis e aberrantes, bem como na ironia que subjaz à questão “Contra hua dama, ó peitos carniceiros, / Feros vos mostrais e cavaleiros?”.

Em jeito de conclusão, Camões mostra a própria Natureza entristecida diante do crime, chorando a “morte escura” da donzela, perpetuando a fatalidade numa fonte pura de onde correm lágrimas em vez de água, que recordará para sempre tais Amores.

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